30 de mai. de 2010

Adolescência e Limite!


A ADOLESCÊNCIA, A CRIATIVIDADE, OS LIMITES E A ESCOLA*

José Outeiral

A adolescência é um momento muito criativo em função, entre outras coisas, de ser um período de transformações. Nesta etapa da vida se conquista o chamado pensamento formal, que oportuniza a pessoa raciocinar sobre hipóteses e elaborar conclusões a partir delas.
Esta nova possibilidade de pensamento, exercitada pelo adolescente em seu dia-a-dia, propicia-lhe um novo tipo de relação com o mundo adulto. Entretanto, nem sempre as premissas de que se utiliza levam em conta a dimensão possível, do real. Para o adolescente é fácil encontrar soluções para os problemas da humanidade, muito embora a maioria delas não seja exeqüível na prática.
O caráter “mágico” que se estabelece entre o “pensado” e o “exeqüível” cria um espaço importante para desenvolver a criatividade que, de início, mostra-se através de uma atividade impulsiva, difusa e caótica (desde a ótica dos adultos), mas perfeitamente normal. Aos poucos a atividade criativa vai assumindo um perfil mais definido, mais integrado e produtivo. O período de transição, entretanto, necessita de um ambiente propício capaz de suportar as tensões dos momentos iniciais deste processo criativo peculiar, tanto na família como na escola. A criatividade na adolescência articula-se necessariamente com a noção de limites. Limite é uma palavra que tem, muitas vezes, uma conotação negativa, ligada erroneamente à “repressão”, “proibição”, “interdição”, etc.*, inclusive lembrando “repressão política”. No entanto, limite é algo muito além disso: significa a criação de um espaço protegido dentro do qual o adolescente poderá exercer sua espontaneidade e criatividade sem receios e riscos. Precisamos lembrar que não existe conteúdo organizado sem um continente que lhe dê forma.
Dois exemplos do antes exposto:
O primeiro deles refere-se a um problema encontrado em uma escola onde os adolescentes apresentavam uma conduta destrutiva com os móveis e demais objetos da classe, e os professores “não sabiam o que fazer”. Questionavam-se muito, faziam reuniões e, enquanto isso os alunos “quebravam a escola”. Isto parecia incompreensível, pois os professores eram experientes, muitos “pós-graduados” em Educação e a escola tinha um regulamento interno que, formalmente, normatizava o que deveria ser feito nesses casos: “colocar limites”. Esta situação “kafkiana” esclareceu-se com a eclosão, de uma greve dos professores em que veio a “tona” a profunda irritação dos adultos com a instituição mantenedora. Este fato tornou clara e evidente que a dificuldade dos professores em colocar “limites” na agressividade dos adolescentes com a escola era, inconscientemente, porque os adolescentes “executavam” o que eles, adultos, gostariam de fazer: esta era a raiz da dificuldade em colocar “limites”.
Situações idênticas poderão ocorrer nas famílias cujos adolescentes têm problemas de conduta e falta de “limites”. Esta falta de “limites” impede o adolescente de exercitar sua capacidade de pensar, de ser criativo e espontâneo.
Com este exemplo, quero enfatizar que a falta de “limites” na adolescência é conseqüência, em maior ou menor grau, de dificuldades dos adultos, pois nenhuma criança nasce com a noção de limites. A noção de “limites” se desenvolve num longo processo de identificação da criança e do adolescente com seus pais, inicialmente, e, depois, com os adultos que a sociedade disponibiliza como professores, artistas, desportistas, políticos, etc.
O segundo exemplo nos reporta a uma situação em que um grupo de crianças, de dez a doze anos, mostrava-se agitado, com agressões e baixo rendimento escolar. A “bagunça” estendia-se a todos os momentos em que estavam na escola. Um professor observou que brincavam aos empurrões e lhe pareceu que, assim, buscavam um contato físico entre si. Esta observação cuidadosa e oportuna fez com que o Serviço de Orientação Educacional (SOE) reunisse o grupo para “conversar” sobre o que estava acontecendo. Os assuntos trazidos evidenciaram que a puberdade estava produzindo toda a “turbulência” e que mais que “agitados” estavam, realmente, “excitados” davam “puxões” e “empurrões”, faziam freqüentes “reuniões dançantes” e chamavam de “galinha” uma menina que, precocemente, apresentava os primeiros sinais da puberdade e que com suas “características sexuais secundárias” provocava ansiedade na turma, que tentava então “queimá-la” numa versão “púbere” da Inquisição. As reuniões do SOE ofereceram um “limite”, um espaço e um tempo protegido, que propiciou substituir a agitação pela verbalização dos conflitos. Certamente puni-los com “suspensões” e medidas disciplinares não seria um “limite” adequado e sim uma “repressão” no mau sentido que, por vezes, tem esta palavra. Um professor sensível e arguto ajudou os púberes em sua difícil “estrada” rumo ao desenvolvimento adolescente.
É necessário enfatizar que as crianças e os adolescentes “pedem limites” e que o “limite” os ajuda organizar sua mente. Os adultos, às vezes, não colocam “limites” porque assim será mais “cômodo”. Colocar limites significa envolvimento, “conter” o adolescente, suportar suas reclamações e protestos, enfim, enfrentar dificuldades. Os adultos poderão também ter dificuldades em colocar “limites” em função de problemas com seus pais, tendo, talvez, sentido-se “reprimidos” nas suas infâncias e adolescências, têm dificuldades com seus filhos. Buscando evitar que eles passem pelo que não gostariam de ter vivido, acabam contribuindo para o surgimento de “problemas”.
Não devemos esquecer os trabalhos do pedagogo britânico S. Neill, que ao relatar sua experiência em uma escola, escreveu um livro chamado Liberdade sem medo, onde descrevia uma experiência pedagógica extremamente liberal, e alguns anos depois, escreveu um outro que, significativamente, intitulou Liberdade sem excesso.
A escola tem um significado primordial para o adolescente. Conforme o ambiente que ele vivencia teremos um aprendizado prazeroso e propício ou distúrbios de conduta e/ou de aprendizagem.
A função da escola é educar, isto é, conforme o significado etimológico da palavra, “colocar para fora” o potencial do indivíduo e oferecer um ambiente propício ao desenvolvimento destas potencialidades, ao contrário de ensinar, que é in + signo, ou seja, colocar “signos para dentro” do indivíduo. Evidentemente, quando a criança chega na escola, levando consigo aspectos constitucionais e vivências familiares, porém o ambiente escolar será também uma peça fundamental em seu desenvolvimento. Estes três elementos - aspectos constitucionais, vínculos familiares e ambiente escolar - constituirão o tripé do processo educacional.
A Escola, a Educação, vive um momento de perplexidade, sem definição de como conciliar as necessidades de uma sociedade em mudança permanente (com contestação, transformações e mudanças de paradigmas e valores) e uma proposta educacional que prepare o “homem do futuro”. Temos que pensar, então, que nem sempre a escola “tem razão” e que muitas vezes a apreciação do adolescente é correta. A escola é feita por pessoas (professores, supervisores, orientadores e diretores são “pessoas”) que lidam melhor ou pior com determinadas circunstâncias. Os pais têm de estar atentos para situações que se derivam destes fatos. Qualquer “Manual de Educação Moderna” aponta como pressuposto a necessidade de respeitar as características individuais do aluno; entretanto, o que se verifica na prática é a realização de um ensino massificado, em grandes escolas de turmas enormes de alunos, mais ao estilo de uma linha de montagem industrial. Como exemplo, verifica-se, também, não raramente, a dificuldade que os professores e a própria escola têm para “reprovar” (palavra extremamente inadequada) um aluno quando ele não conseguiu dominar o conteúdo X de conhecimento em um tempo Y, e acabam colocando na família e/ou no próprio aluno a resistência em aceitar a reprovação, como desculpa de sua própria insegurança. Os professores, muitas vezes, não toleram as dificuldades de um determinado aluno porque sentem estas dificuldades como “ferida narcísica” em sua capacidade de ensinar.
Os pais e professores deverão saber, por outro lado, que estes serão os “recipientes” de impulsos, fantasias, emoções e pensamentos mais ou menos conscientes que os adolescentes têm em relação aos próprios pais. Amor e agressividade, originalmente dirigidos aos pais, serão “transferidos” para os professores. Poderá acontecer que um adolescente, irritado com seus pais, tenha com estes uma atitude aparentemente “adequada”, extravasando com um professor toda a “bronca” com eles. O professor ficará surpreso com a atitude do aluno, mas sua experiência e intuição lhe farão perceber que “algo está acontecendo”. Os pais, se chamados à escola pelas atitudes do filho, poderão não compreender o que sucede, já que ele está “tão calmo em casa”... . Poderá acontecer, também, tomando o exemplo anterior, que o adolescente não demonstre explicitamente a irritação dirigida aos pais com o professor e que a conduta negativa apareça sob a forma de um baixo rendimento escolar na disciplina. Não serão apenas os sentimentos agressivos que serão “transferidos” desse modo, os amorosos também. Os professores, à vezes, são os primeiros objetos de “amor edípico”, ocorrendo uma “transferência amorosa”. Por exemplo, um menino pode transferir o amor que sente pela mãe para uma determinada professora, por esta lembrar-lhe, consciente ou inconscientemente, a figura materna. Este amor tem um aspecto incestuoso, produzindo ansiedade e culpa, o que poderá se manifestar de uma forma sublimada, através de um grande interesse em aprender, ou, ao contrário, por um desinteresse pela matéria. Algumas dificuldades escolares na adolescência se assemelham a situações desse tipo. É interessante lembrar também, que trabalhar com adolescentes, como já vimos, desperta o adolescente que existe nos adultos, e isto, nos professores, poderá desenvolver distintos sentimentos por um determinado adolescente que lhe evoque as situações de vida de sua própria adolescência.
O que confere à escola importância vital no processo de desenvolvimento do adolescente é o fato dela ter a características de ser uma simulação da vida, na qual existem regras a serem seguidas, mas que se pode transgredi-las sem sofrer as conseqüências, impostas pela sociedade, e ser esta uma oportunidade de aprender com a transgressão.
Deve-se levar em conta, também, que a relação do aluno com a escola é afetada pela significação que os pais dão a ela, aos estudos de seu filho e às relações dele com os demais alunos. Pais que tenham sido submetidos a uma escolarização muito rígida podem, inconscientemente, buscar uma escola permissiva que “compense” a sua vivência escolar de sofrimento. Podem, por outro lado, fazer com que seus filhos sofram tanto quanto eles e “passem” por tal situação para poderem se tornar “tão educados” quanto eles.
O desejo de saber e obter prazer pelo saber certamente está mediatizado em primeiro lugar pelos pais e, depois, mais tarde, pelos professores e pela escola. Um pode compensar o outro, ou até anular seus efeitos.
A escola não oportuniza somente a relação com o saber e, como uma atividade eminentemente grupal, tem também funções de socialização. Em busca de sua identidade, o adolescente encontra na micro-sociedade da escola um sistema de forças que atuam sobre ele, onde, entre outras coisas, reedita seu ciúme fraterno, compete, divide, rivaliza, oprime e é oprimido, ou seja, reproduz o sistema social. É por esta razão que a escola, muitas vezes, pode detectar dificuldades no processo de desenvolvimento do aluno, que aparece por inteiro na busca de si mesmo, e seu olhar sobre ele é, em geral, menos comprometido emocionalmente do que acontece com os pais.
Podemos dizer, “brincando”, que, se ser adolescente é “difícil”, ser um adulto em contato com ele é duplamente “difícil”: primeiro porque temos de lidar com o adolescente “de fora”, externo, real, e depois com o adolescente “de dentro”. Novamente, enfatizamos a importância de que o adulto que está em contato com o adolescente (pais, professores, etc.) tenha uma “visão binocular”, de dentro e de fora, do adolescente real e das “memórias adolescentes”, carregadas ainda de impulsos, fantasias, desejos, emoções, etc., não como algo indesejável, mas como demonstração de vida.
É muito importante também, que exista (se podemos chamar desta forma...) uma “relação de confiança” entre a família e a escola escolhida, evidentemente, pelos pais para educar seus filhos, isto é, para que os “auxilie” a educar seus filhos. Vemos, com freqüência, os pais criticarem a filosofia pedagógica da escola escolhida na presença dos filhos, de uma forma que predispõe o adolescente contra a escola. Evidentemente, críticas existirão de parte a parte, mas elas deverão ser tratadas nos “canais de comunicação” adequados existentes (ou serem criados) ligando o binômio família-escola.
É extremamente necessário que se evitem dissociações (tão freqüentes...) em que os pais criticam a escola (projetando na instituição todos os aspectos negativos do processo ensino-aprendizagem e, por vezes, da conduta dos filhos) e que a escola, por sua vez, faça o mesmo (projetando na família todas as incompetências, falta de colocação de limites, falta de participação, etc.) . A criação de uma “comunidade realmente operante” poderá tornar a relação família-escola mais integrada e com menos “distorção e ruído” na comunicação. Convenhamos que os adolescentes são, em algumas situações, hábeis em promover dissociações entre, por exemplo, pai e mãe, entre família e escola, etc.
A família e a escola deverão compreender que, eventualmente, é melhor uma “troca” de escola do que submeter o adolescente a um ambiente que não lhe é adequado e, para isto, é necessário, às vezes, experimentar mais de uma instituição. Não basta que a escola tenha sido aquela que o pai e a mãe cursaram, ou que os pais “imaginaram” que tenha “a melhor proposta pedagógica”. É necessário encontrar uma instituição escolar que se aproxime do adolescente (e sua família). Esta escola não precisará, inclusive, reproduzir os “valores familiares”, propiciando, desta forma, outros modelos identificatórios para o adolescente, que assim, terá mais elementos para construir sua “identidade”. É imprescindível, entretanto, que a família e a escola saibam que estão “compartindo” esta experiência.

FONTE: Livro 'O mal-estar na escola', de José Outeiral e Cleon Cerezer, Ed. Revinter.

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